domingo, 29 de março de 2009

Entropia


O domingo chove na manhã tranquila. Os olhos pesados pela noite mal dormida fazem esforço para abrir. Os possíveis confrontos do dia duplicam a falta de vontade de se levantar.
A noite anterior deixou suas marcas. O gosto amargo na boca trás lembranças desagradáveis. O zumbido agudo continua a se perpetuar em seus ouvidos.
A mão passa sobre o cabelo tentando arrumar a desordem. Um bocejo interrompe a ação deixando a mão estática.
Passos atrás da porta denunciam a presença de familiares assassinos de maus atos. A voz macia pergunta com cuidado: "Você já acordou?". A pergunta é ignorada assim como a dor de cabeça atordoante.
Um sopro frio vindo da janela entreaberta deixa o corpo arrepiado. A primeira sensação boa do dia projeta um sorriso no rosto inchado.
O óculos com lentes sujas é posto. Indaga-se se consegue enxergar melhor com ou sem o objeto pendurado no rosto.
Está indiferente. Levanta.


[Femme Assise. Miró, Joan]

segunda-feira, 23 de março de 2009

Devaneios aleatórios

Entre as dúvidas e as certezas: o cigarro após o almoço.

Os sonhos não existem desde que o relógio sutilmente ordenou que o dia começasse.
A vida tem suas curvas, seus segredos, suas cores.

O amigo da fila se transforma em pensamento quando não está presente.
Existem pessoas que são apenas necessárias por algumas horas, são mais eficazes como rastros de lembranças.

A escada define o caminho.
Seus músculos e suas pretensões dizem se é possível e necessário.

Cenas jamais se repetem.
Uma gota de água que cai do teto com infiltração pode mudar uma vida.
Uma cena se transforma por menos.

Os homens sujos procuram com olhares o que lhes é imposto.
A necessidade tem suas exceções.
Regras já nascem quebradas.

O cigarro após o almoço acaba.

terça-feira, 17 de março de 2009

Tão perto

Eu postei no outro blog e deu vontade de pôr aqui também.
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Esqueço a menina que chora ao meu lado no banco do parque, esqueço o sofrimento da velha reumática que se empurra contra a idade pela ciclovia, esqueço a dor de viver a esperar o momento certo de levantar-me, abrir o guarda-chuva, e partir.
Vivo o trigésimo terceiro ano de minha estadia neste planeta, e o momento exato de partir nunca se mostrou para mim. Entenda partir não só como ir para algum lugar, mas sim libertar-me de certo modo.
A chuva chega, vai, e eu continuo, não literalmente é claro, parado em um banco de praça. Tenho minha vida, meus amores, meus ódios e até meus segredos, mas nunca pude dizer que levantei do banco da praça e parti.
Sempre vivi a observar e sentir os outros. Se alguém cai de uma bicicleta não levanto para ajudar, apenas sinto a dor das feridas que a queda abriu. Caso alguém ganhe qualquer coisa, fico extremamente feliz. E se perde, fico triste por dias. Assim vou indo, olho a chuva e imagino friamente me molhar.


sábado, 14 de março de 2009

Nítido

O mesmo vento que entortou a flor passou no cabelo desarrumado anunciando a tarde fria.

As aquarelas sem sal são os vestígios.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Cinzas

Quem define a beleza de seus passos são os sapatos que te suportam.
Trocaria sua vida de fama e sucesso por um amor?
Compraria morangos silvestres com o dinheiro destinado ao copo de rum?

O menino baila no salão vazio, sem música, sem companhia, sem vontade. É necessário manter o posto! É necessário morrer a cada esquina?

A vida é sua, lute por suas causas! Cause em suas lutas. Esqueça de mim, meu problema é a falta de interesse em suas causas e em todas as nossas conseqüências.

Em uma das festas falsas - que não divertem - perguntaram se está tudo bem. Tudo nunca está bem, meus queridos, nunca. Porém, por alívio de consciências, saibam que da cabeça para baixo tudo está em ótimo estado.

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Frases que vieram soltas depois de um filme qualquer.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Eu te amo, mas não para sempre, desculpe.

"Ao mesmo Deus que ensina a prazo
Ao mais esperto e ao mais otário
Que o amor na prática é sempre ao contrário" - Cazuza


Indo em direções contrárias iam corações contrários. Amor é dor a longo prazo, sabiam, arriscaram. E antes de narrar a separação de duas almas é necessário contar o início dos dias mais coloridos de ambas as partes envolvidas.
Ela Mariana, 23, fotógrafa, ama antiquários, odeia casas verdes. Ele Luciano, 25, artista plástico, ama a chuva, odeia cheiro de morango - não o morango. Tinham costumes diferentes, quase opostos, porém em um dia em que o café frequentado por Mariana e o bar por Luciano estavam fechados resolveram, ao mesmo tempo, ir ao museu da cidade. A exposição parecia mostrar as piores obras do pintor. "Se me der um gato e um balde de tinta eu reproduzo esse quadro" - Luciano disse a Mariana enquanto olhavam para o mesmo quadro e faziam a mesma expressão. Ela riu. Ele a convidou para um café, "O café está fechado!" - respondeu, continuou: "Que tal uma cerveja?". "O bar está fechado." - Respondeu triste Luciano. "Não quer andar um pouco por aí?" - Perguntou Mariana, que ficou encabulada até receber o "sim" amoroso.

O "andar por aí" se transformou em "quer subir?", que depois de algumas semanas virou "quer namorar comigo?". "Brigas todos têm" - Diziam enquanto se abraçavam no fim de alguma discussão. Passaram semanas, meses, então três anos. O namoro parecia ser eterno, mas o cheiro dos perfumes enjoava tanto quanto os olhares. O amor se tornou ódio. E o fim foi declarado em plena estação do metrô.

- Quando você disser que chega às nove, por favor, chegue às nove.

- São só nove e meia Luciano.

- Não to disposto pra brigas, vamos logo?

- Pra onde?

- Oras. Pro museu.

- Não pode ser pro parque?

- Não Mariana. Aquela exposição em que nos conhecemos está lá de novo. E eu acho interessante comemorar três anos de namoro onde tudo começou.

- Ah, claro, mas antes eu preciso te contar uma coisa Luciano.

- Fala.

- Semana passada eu fiquei com o Eduardo.

Eduardo, 27, editor chefe, patrão de Mariana, ama manchas de tintas, odeia gritos.

- "Ficou" em que sentido?

- Nós transamos ora.

- Por quê?

- Não te interessa.

- Ta, já que é assim eu preciso confessar que transei com a Márcia.

Márcia, 29, empresária, vizinha de Luciano, ama barulho de moedas caindo no chão, odeia cheiro de velas.

- Eu não acredito!

Olharam-se, riram e partiram.
O amor não acabou, ele nunca acaba. Muda de nome, de imagem, de destinatário, de sabor, de intensidade. Muda sempre, não acaba nunca.

[Eu esqueci de assinar o desenho quando o terminei, mas é meu.]