quinta-feira, 30 de abril de 2009

Delírios risíveis


John chega ao fim da rua estreita, para na esquina movimentada e abre a mochila de couro surrado à procura de seus cigarros. Percebe que do outro lado da rua vem uma amiga dos tempos que tocava violão em uma banda. "Maria ou Amelie?" - Pensa confuso acendendo o cigarro. Era ruiva, vestia um vestido vermelho e andava rápido em sua direção. "John quanto tempo!" - Diz a mulher ao abraçá-lo. "Seu aniversário não foi ontem?" - Pergunta cabulada pela falta de animação do amigo. "Sim, completei 34 longos invernos" - Diz soltando fumaça pela boca. Ao terminar a dolorosa frase que diz ao mundo sua idade, a ruiva, Maria ou Amelie, some da frente de John como a fumaça que acabara de soltar.

[Texto e pitura meus . :)]

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Outono



Existe uma hora em todo fim de tarde de outono que não consigo - já tentei diversas vezes - descrever. Acontece algo tão sublime que não cabe a mim nem a minhas palavras explicar. Não sei se são as boas recordações ou o clima calmo que vem a tona em tal momento.

A luz vermelha de um sol amigo invade a sala de estar, um vento frio me toca a pele e um silêncio tão audível e amável quanto um riso infantil me levam para além de mim mesmo.

Tão simples e tão perpétuo é o momento que sinto vontade de ficar ali parado, para sempre.

Até enfim que o sol se vai e me liberta do prazer sufocante do fim de tarde.


[Foto: Olivier Taugourdeau]

terça-feira, 14 de abril de 2009

Conto dos pobres gatos mortos

Não fosse a última cruel evidência, os assassinatos do bairro não seriam descobertos. Tudo começou quando o pobre Romeu apareceu moribundo no portão de dona Zuleica. Romeu era um gato sério, desses que não se dão aos infortúnios acometidos pelos outros felinos do bairro. Nunca ouvi o pobre gato se quer miar em meu telhado. O coitado, aparentemente envenenado, foi o primeiro de uma sucessão de crimes cruéis. Sem explicação, o defunto foi posto em um saco plástico e levado pela coleta pública de lixo.

Em uma segunda-feira chuvosa o segundo a perder a vida foi Reginaldo. Era um gato esperto, filho de legítimos siameses. Nunca dera trabalho a sua jovem dona. Foi aos prantos que Ritinha recolheu, em um misto de nojo e tristeza, seu amado Reginaldo. O gato teve o funeral que mereceu. Lápide e velas enfeitaram o jardim de Ritinha até o tempo tornar-lhes lixo.

O medo e a insegurança eram perceptíveis no olhar de todos os gatos que passavam por mim. Sentia dó ao me imaginar em suas peles peludas. Senti tanto que me pus a buscar informações relevantes sobre as mortes inexplicáveis do bairro. Mortes sucessivas ocorreram sem adicionar nada interessante à minha investigação, apenas que gatos morrem fácil demais.

De minha janela da sala de estar posso ver o quintal de seu Roberval. Senhor honesto e bastante querido nas redondezas, como aqueles que distribuem pirulitos e deseja "bom dia" a deus e ao mundo. Enfim, em minha observação matinal regada a café amargo, deparei-me com uma cena um tanto esquisita. Pude ver o bom velho nas pontas de seus carcomidos pés colocar uma pequena vasilha preta em cima do muro que protege sua casa dos desprazeres da rua.

Tenho a árdua tarefa de levar seu Roberval de carro toda quinta-feira à farmácia da cidade. Tendo em vista os melhores preços para seus remédios vitais e a pouca mobilidade de seus ossos, levo-o até lá por puro filantropismo. Em nossa última ida ao centro pedi a ele que me deixasse analisar suas orquídeas. Puro bom humor, deixou-me sem retrucar. Quando voltamos, estacionei em seu portão e adentramos em sua casa. Com seu lento caminhar e a necessidade de guardar os remédios comprados andou em direção a porta da casa e me deixou esperando-o voltar para dissertar sobre suas orquídeas. O tempo foi mais que necessário para eu descobrir que no seu vasilhame em cima do muro tinha muito mais que comida de gato. "Seu Roberval é um assassino!" - Pensei com cólera, porém antes de desmascarar o inescrupuloso Roberval, escutei sua explicação sobre as orquídeas e tomamos um delicioso chá com biscoitos juntos.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Impessoalidade

Enquanto explica suas dores e seus distúrbios, procura em seu íntimo conformidade e explicação para os desenganos alheios. Não os desenganos dos outros, esses pouco importam, mas sim os próprios desenganos que se figuram alheios pela distância que tem do "eu" exposto a qual chama de "verdadeiro eu". A vida simples que seu "verdadeiro eu" leva aos empurrões de sonhos comuns é fácil de corrigir, analisar, mudar e encarar.

Os destroços da figura interna são complexos e merecem atenção. Não a atenção da senhora pseudo-intelectual que o escuta por horas pagas no fim do mês. Continua indo às sessões por gostar das tentativas falhas de entendimento de seu "verdadeiro eu". Seu "eu" íntimo, problemático, inatingível é só seu, de mais ninguém.

A conciliação entre os desejos mórbidos de sua personalidade fácil com seu outro "eu" denso tem de ser auto-concebida, e não proposta por estranhos que nunca encostaram no núcleo do átomo purgante e explosivo.

Suas prosas públicas feitas em grupo escondem o mal sujeito que não vê solução. O "eu" simples funciona como esponja de caracteres recebidos. Sonhos, vontade, desapegos e ódios ditos entre assuntos irrelevantes são sugados e expostos futuramente. Não há verdade. Frente ao mundo corrosivo melhor expor coisas boas, comuns.

O "estranho eu" fala ao ouvido nos momentos solitários, provoca pensamentos de crise, indaga sobre a falsa reputação, fere. Não vendo solução o torna alheio.