Estava escrito e terminado, mas ligado à mim como as coisas que ainda não concluí. Não é mais meu, libertei-me, agora fica aqui como ponto final.
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Água gelada, fria como a vida que leva junto ao marido e os dois filhos. Teve a mão a faca e cortou o queijo, arrependeu-se amargamente. Empurrou aos cantos da alma os sofrimentos e passou forte o sabonete onde é limpo por definição. Apoiou-se no azulejo quebrado, o único que a compreende por completo entre tantos outros perfeitos e azuis, arrogantes em sua simplicidade. Nunca tentara alcançar a simplicidade, sempre tentou o importuno, o difícil, não conseguiu jamais. Fechou a água e se sentou no chão para tornar o momento um pouco mais demorado. Sentiu o piso frio gelar a superfície da pele, amou-se onde a pele tocou o solo. Jogou ao chão sua dor, seu corpo. Cabe-se dentro de si, não se põe para fora como a personagem do livro que lera na tarde anterior, - esperava os filhos saírem do colégio quando leu a última página, a personagem virou eternidade nas frases mal arrumadas pelo autor - e ela boba, não era frase, nem livro e nem eternidade, no máximo era banheiro. Tinha ao corpo a pequena partícula que forma tudo e não conseguia sentir-se nada.
Passos fortes sobre o assoalho procuravam por ela. Teve medo, ergueu-se rápido. Caso perguntassem sobre o vão momento em que ficará em banho sem o barulho de água responderia que penteava o cabelo, caso perguntassem se o cabelo fora bem penteado diria alegre que sim. Não chamaram por ela, não a quiseram. Os passos ignoraram sua mediocridade. Era ótima frente ao fogão, sobre a máquina de lavar, e mais ainda sobre a tábua de passar. Não sendo necessária comida, roupa limpa ou passada ela não se fazia necessária. Riu, fechou a água e voltou a se sentar.
Teve medo de morrer, não de morrer, de não continuar após morta. Disseram-na quando criança que basta dez anos após sua morte para que seu nome e sua reputação vão para junto do resto do corpo embaixo da terra. Não quer seu nome junto de si sob a terra. O medo orgânico de deixar os filhos para alimento do mundo não existe, nunca existiu para ela, saíram do ventre não da alma. Não eram dela, nem de ninguém. O marido bobo que nunca descobrira sua verdadeira face tão menos importava. Queria algo mais, levantou. Ter medo da morte assegura que a vida deste jeito então é boa. Não é, e não faz sentido.
A irmã gorda que acha ter certeza de tudo, e que está sempre certa, impõe uma aceitação que não quer mais ter. Distanciou-se da irmã por alguns meses e mesmo longe seus atos eram para ela, seriam aceitos? Seriam? Não importa o arroz queimado, o que importa é se entenderão que o arroz queimou por um descuido humano, passível de ser cometido até por sua irmã. Achava-a inteligente, irritante, irônica, superior, mas quando por perto demonstrava amor fraternal. Seria esse seu propósito, viver à sombra da irmã que não faz idéia de seus atos.
Trocou a temperatura do chuveiro com leveza majestosa, a água expelida agora será quente. Tentativa falha de se sentir mais aconchegada esqueceu de abrir a torneira e se perdeu em mais alguns pensamentos. Terá ela comprado presunto suficiente para o jantar? O tempo que resta para as seis da tarde acompanhará o preparo do assado? Como será o oposto do que sinto? Inevitavelmente deixou-se cair novamente no chão. Desta vez sem tato caiu meio deitada meio ajoelhada sobre o próprio corpo. Amargou-se por não ter o livro da tarde anterior ali perto, gostaria de lê-lo, fugir da realidade, sumir entre as páginas. Não o tendo tentou inventar uma estória qualquer, fazendo de si a personagem principal. O único roteiro a que conseguiu adaptar seu personagem era o da própria história, chata, sem aventura nem animação. Seus sonhos quais eram? Poderia ter realizado algum em pensamento, trocado alguns detalhes ou arrumado os finais. Saber quais são é difícil. Achou então que precisa de uma psicóloga, um psicanalista, um analista, ou algo assim. Desistiu em seguida por medo de descobrirem o tempo que desperdiçou no banho para decidir que precisava disto. Levantou torta com as pernas dormentes, segurou-se firme na prateleira para conseguir ficar plena de pé, ficou. Saiu do box meio tonta, triste e já seca.
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Água gelada, fria como a vida que leva junto ao marido e os dois filhos. Teve a mão a faca e cortou o queijo, arrependeu-se amargamente. Empurrou aos cantos da alma os sofrimentos e passou forte o sabonete onde é limpo por definição. Apoiou-se no azulejo quebrado, o único que a compreende por completo entre tantos outros perfeitos e azuis, arrogantes em sua simplicidade. Nunca tentara alcançar a simplicidade, sempre tentou o importuno, o difícil, não conseguiu jamais. Fechou a água e se sentou no chão para tornar o momento um pouco mais demorado. Sentiu o piso frio gelar a superfície da pele, amou-se onde a pele tocou o solo. Jogou ao chão sua dor, seu corpo. Cabe-se dentro de si, não se põe para fora como a personagem do livro que lera na tarde anterior, - esperava os filhos saírem do colégio quando leu a última página, a personagem virou eternidade nas frases mal arrumadas pelo autor - e ela boba, não era frase, nem livro e nem eternidade, no máximo era banheiro. Tinha ao corpo a pequena partícula que forma tudo e não conseguia sentir-se nada.
Passos fortes sobre o assoalho procuravam por ela. Teve medo, ergueu-se rápido. Caso perguntassem sobre o vão momento em que ficará em banho sem o barulho de água responderia que penteava o cabelo, caso perguntassem se o cabelo fora bem penteado diria alegre que sim. Não chamaram por ela, não a quiseram. Os passos ignoraram sua mediocridade. Era ótima frente ao fogão, sobre a máquina de lavar, e mais ainda sobre a tábua de passar. Não sendo necessária comida, roupa limpa ou passada ela não se fazia necessária. Riu, fechou a água e voltou a se sentar.
Teve medo de morrer, não de morrer, de não continuar após morta. Disseram-na quando criança que basta dez anos após sua morte para que seu nome e sua reputação vão para junto do resto do corpo embaixo da terra. Não quer seu nome junto de si sob a terra. O medo orgânico de deixar os filhos para alimento do mundo não existe, nunca existiu para ela, saíram do ventre não da alma. Não eram dela, nem de ninguém. O marido bobo que nunca descobrira sua verdadeira face tão menos importava. Queria algo mais, levantou. Ter medo da morte assegura que a vida deste jeito então é boa. Não é, e não faz sentido.
A irmã gorda que acha ter certeza de tudo, e que está sempre certa, impõe uma aceitação que não quer mais ter. Distanciou-se da irmã por alguns meses e mesmo longe seus atos eram para ela, seriam aceitos? Seriam? Não importa o arroz queimado, o que importa é se entenderão que o arroz queimou por um descuido humano, passível de ser cometido até por sua irmã. Achava-a inteligente, irritante, irônica, superior, mas quando por perto demonstrava amor fraternal. Seria esse seu propósito, viver à sombra da irmã que não faz idéia de seus atos.
Trocou a temperatura do chuveiro com leveza majestosa, a água expelida agora será quente. Tentativa falha de se sentir mais aconchegada esqueceu de abrir a torneira e se perdeu em mais alguns pensamentos. Terá ela comprado presunto suficiente para o jantar? O tempo que resta para as seis da tarde acompanhará o preparo do assado? Como será o oposto do que sinto? Inevitavelmente deixou-se cair novamente no chão. Desta vez sem tato caiu meio deitada meio ajoelhada sobre o próprio corpo. Amargou-se por não ter o livro da tarde anterior ali perto, gostaria de lê-lo, fugir da realidade, sumir entre as páginas. Não o tendo tentou inventar uma estória qualquer, fazendo de si a personagem principal. O único roteiro a que conseguiu adaptar seu personagem era o da própria história, chata, sem aventura nem animação. Seus sonhos quais eram? Poderia ter realizado algum em pensamento, trocado alguns detalhes ou arrumado os finais. Saber quais são é difícil. Achou então que precisa de uma psicóloga, um psicanalista, um analista, ou algo assim. Desistiu em seguida por medo de descobrirem o tempo que desperdiçou no banho para decidir que precisava disto. Levantou torta com as pernas dormentes, segurou-se firme na prateleira para conseguir ficar plena de pé, ficou. Saiu do box meio tonta, triste e já seca.
6 Opiniões:
Na vida temos que, a cada momento nos reinventar como personagens centrais da existência ... não importa se fictícios ou reais ... para não amargarmos a solidão e o sentimento de tempo perdido ... a vida exige pressa ... pressa para amar ... pressa para viver ... e que tudo seja pleno e abundante ... plena a dor ... plena a angústia ... para que assim também sejam plenas a alegria e a felicidade.
Amido, deliciosamente denso e lírico tudo aqui ... encantamento puro
bjux
;-)
"passou forte o sabonete onde é limpo por definição."
"Apoiou-se no azulejo quebrado, o único que a compreende por completo entre tantos outros perfeitos e azuis"
"amou-se onde a pele tocou o solo." (!!! bom demais!)
"e ela boba, não era frase, nem livro e nem eternidade, no máximo era banheiro."
"Não importa o arroz queimado, o que importa é se entenderão que o arroz queimou por um descuido humano, passível de ser cometido até por sua irmã." (ótimo! ótimo!)
"Como será o oposto do que sinto?"
Tem um selo para vc no meu blog caso queira compartilha-lo.
abração
;-)
ME RECUSO a comentar qualquer que seja a palavra neste texto...
Como sempre ele nos deixa sem palavras...
Poderia ficar aqui falando e falando, mas sinto que as palavras são poucas as tuas escritas.
Um grande bjooooo!
Obs: Fiquei muda.
Adoro a maneira que você me leva para junto das suas cenas criadas.
Adoro compartilhar do resultado do seu dom, do seu poder de narrar algo tão bom e tão singular.
Adoro sentir tudo o que os seus personagens sentem.
Não descanso enquanto não comprar algo seu na Livraria Cultura.
Beijos
A face oculta do desespero, da desatenção... dentro de um banho poético, um banho de água fria para muitos...
parabéns...
bjitos
http://www.pequenosdeleites.blogspot.com
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