sexta-feira, 31 de julho de 2009

Banho

Estava escrito e terminado, mas ligado à mim como as coisas que ainda não concluí. Não é mais meu, libertei-me, agora fica aqui como ponto final.

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Água gelada, fria como a vida que leva junto ao marido e os dois filhos. Teve a mão a faca e cortou o queijo, arrependeu-se amargamente. Empurrou aos cantos da alma os sofrimentos e passou forte o sabonete onde é limpo por definição. Apoiou-se no azulejo quebrado, o único que a compreende por completo entre tantos outros perfeitos e azuis, arrogantes em sua simplicidade. Nunca tentara alcançar a simplicidade, sempre tentou o importuno, o difícil, não conseguiu jamais. Fechou a água e se sentou no chão para tornar o momento um pouco mais demorado. Sentiu o piso frio gelar a superfície da pele, amou-se onde a pele tocou o solo. Jogou ao chão sua dor, seu corpo. Cabe-se dentro de si, não se põe para fora como a personagem do livro que lera na tarde anterior, - esperava os filhos saírem do colégio quando leu a última página, a personagem virou eternidade nas frases mal arrumadas pelo autor - e ela boba, não era frase, nem livro e nem eternidade, no máximo era banheiro. Tinha ao corpo a pequena partícula que forma tudo e não conseguia sentir-se nada.
Passos fortes sobre o assoalho procuravam por ela. Teve medo, ergueu-se rápido. Caso perguntassem sobre o vão momento em que ficará em banho sem o barulho de água responderia que penteava o cabelo, caso perguntassem se o cabelo fora bem penteado diria alegre que sim. Não chamaram por ela, não a quiseram. Os passos ignoraram sua mediocridade. Era ótima frente ao fogão, sobre a máquina de lavar, e mais ainda sobre a tábua de passar. Não sendo necessária comida, roupa limpa ou passada ela não se fazia necessária. Riu, fechou a água e voltou a se sentar.
Teve medo de morrer, não de morrer, de não continuar após morta. Disseram-na quando criança que basta dez anos após sua morte para que seu nome e sua reputação vão para junto do resto do corpo embaixo da terra. Não quer seu nome junto de si sob a terra. O medo orgânico de deixar os filhos para alimento do mundo não existe, nunca existiu para ela, saíram do ventre não da alma. Não eram dela, nem de ninguém. O marido bobo que nunca descobrira sua verdadeira face tão menos importava. Queria algo mais, levantou. Ter medo da morte assegura que a vida deste jeito então é boa. Não é, e não faz sentido.
A irmã gorda que acha ter certeza de tudo, e que está sempre certa, impõe uma aceitação que não quer mais ter. Distanciou-se da irmã por alguns meses e mesmo longe seus atos eram para ela, seriam aceitos? Seriam? Não importa o arroz queimado, o que importa é se entenderão que o arroz queimou por um descuido humano, passível de ser cometido até por sua irmã. Achava-a inteligente, irritante, irônica, superior, mas quando por perto demonstrava amor fraternal. Seria esse seu propósito, viver à sombra da irmã que não faz idéia de seus atos.
Trocou a temperatura do chuveiro com leveza majestosa, a água expelida agora será quente. Tentativa falha de se sentir mais aconchegada esqueceu de abrir a torneira e se perdeu em mais alguns pensamentos. Terá ela comprado presunto suficiente para o jantar? O tempo que resta para as seis da tarde acompanhará o preparo do assado? Como será o oposto do que sinto? Inevitavelmente deixou-se cair novamente no chão. Desta vez sem tato caiu meio deitada meio ajoelhada sobre o próprio corpo. Amargou-se por não ter o livro da tarde anterior ali perto, gostaria de lê-lo, fugir da realidade, sumir entre as páginas. Não o tendo tentou inventar uma estória qualquer, fazendo de si a personagem principal. O único roteiro a que conseguiu adaptar seu personagem era o da própria história, chata, sem aventura nem animação. Seus sonhos quais eram? Poderia ter realizado algum em pensamento, trocado alguns detalhes ou arrumado os finais. Saber quais são é difícil. Achou então que precisa de uma psicóloga, um psicanalista, um analista, ou algo assim. Desistiu em seguida por medo de descobrirem o tempo que desperdiçou no banho para decidir que precisava disto. Levantou torta com as pernas dormentes, segurou-se firme na prateleira para conseguir ficar plena de pé, ficou. Saiu do box meio tonta, triste e já seca.


sábado, 25 de julho de 2009

Dormir... dormir... Talvez sonhar...


"Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer..., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa idéia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis morosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte - terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou - que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz covardes a consciência. Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões, e até o nome de ação perdem."
Hamlet, Shakespeare

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Lixo imaginário

Podre e tão só morre a desgraça
Engraçada talvez se vista de longe
Insípida se não vista
Há vistas que preferem não ver

A culpa tem dono
O dono não tem culpa
Mora longe
Bebe uísque
Mora, bebe, morre
Tem herdeiros

Com quem fica o espaço na calçada
Não importa
Um ambulante, uma ambulância, um panfletinho
Que oferece "Dinheiro já" e diz lá no canto esquerdo
"Não jogue lixo na rua, ela é a casa de um pobre coitado"
Fim, riso, já disse que não importa?

sábado, 11 de julho de 2009

Meio-fio

Vento quente e passos rápidos. Bolsa de papel apertada contra o peito e vestido na altura dos joelhos com estampa de florzinhas que de longe parecem bolinhas coloridas. Bola rola nos paralelepípedos quentes, são férias. Mulheres cansadas com suas vidas na boca conversam por cima dos muros baixos. Ela passa rápido e olha para o chão concentrada tentando descobrir o assunto. Um caminhão que vai entregar a cama nova da vizinha passa pela rua e arrebenta um dos fios de eletricidade. Ela passa, mas ninguém vê.

sábado, 4 de julho de 2009

A bússola aponta sempre para o norte

Pensou nos filhos sem futuro, pensou no choro da esposa, lembrou até dos latidos importunos do cachorro durante a noite e continuou a andar. Não andava por liberdade, não mesmo, andava tentando achar um rumo, uma direção. Perdia-se toda vez que olhava para o céu, tinha inveja das nuvens, do azul, do nada. Pisava em passos firmes, afinal não ter um rumo não era desculpa para não ser intenso. No sapato carregava dedos ativos e animados que se mexiam entre os contatos do sapato com o solo. Estava em êxtase constante, o que era difícil explicar para um sujeito mal letrado e com uma vida tão sem..., sem..., enfim, sem. Cogitou diversas vezes durante seu percurso a não existência de um rumo a seguir, sendo esse o único caminho verdadeiro. Desistiu de cogitar, cansava demais. Já lhe mostraram alguns caminhos alternativos, a maioria com salvação espiritual no final, ele simples não se importava com o final, mas o que viveria até chegar lá, agradecia e continuava a andar. Divertiu-se quando lhe fizeram uma proposta para a venda de sua alma; "Chefia, não posso vender uma coisa que não sei se tenho no estoque." - Respondeu maroto. E sem muitas explicações e algumas dores que fez questão de enfrentar, ele morreu.